sábado, 26 de janeiro de 2008

Peru - primeiras imagens

A história dos cachorros pendurados pelos Sendero Luminoso está presente no Abril Vermelho (Santiago Roncagliolo, Alfaguara) e no Radio Cidade Perdida. Com as imagens que se repetem nos livros, começo a formar uma idéia sobre um país do qual não sei nada além de Machu Pichu, do nome da capital, da existência do Sendero Luminoso e das idas e vindas do Fujimori – e tomara que não tenha nenhum erro de geografia nesse caminho curto. Os livros me contam histórias de depois da guerrilha e do governo Fujimori, mas em todas as linhas se referem a isso. O bairro de Lima que cresceu com a saída das pessoas do campo, os apagões na cidade, os cachorros pendurados com dizeres de “Assim morrem os traidores”. Pesquisa rápida no Google me faz entender que foram pendurados em quatro povoados diferentes. O quanto essas histórias marcam a vida do país até hoje? De que forma? Será na proporção do Menem pra Argentina, ou da ditadura militar de lá, ou será como a ditadura daqui que, me parece, está viva apenas na memória das pessoas da esquerda que passaram por ela batendo de frente?

Um dos trechos que me chamou atenção no Abril Vermelho fala disso. É uma conversa entre o personagem principal, o promotor distrital adjunto Félix Chacaltana, e Edith, sua amiga garçonete que ele mal conhece.

- Como foi que seus pais faleceram?
- Pelos terroristas – respondeu ela.
- Foi uma época horrível, não?
- Não quero falar disso.
Ninguém queria falar. Nem os militares, nem os policiais, nem os civis. Tinham sepultado a lembrança da guerra junto com os seus mortos. O promotor pensou que a memória dos anos 1980 era como a terra silenciosa dos cemitérios. A única coisa que todos compartilha, a única de que ninguém fala.

Ou este, na beira de um grande buraco de corpos e ossos
(não quero transcrever a parte anterior, é pesada e forte) ... a mente perdida em algum momento do tempo, quando tudo era ainda mais perigoso, perguntando-se quanto demoraria este tempo para se esgotar, quantos anos a memória ainda levaria para desaparecer, a dor para se extinguir, as feridas para cicatrizarem, os olhos para se fecharem


No Abril Vermelho, a questão dos índios está presente o tempo todo e muito claramente. È no interior do país, e lá se fala Quíchua entre os camponeses e espanhol entre as autoridades, pelo que conta o livro.

Não sei o quanto é bom ficar transcrevendo partes dos livros, mas vão uns pedaços que mostram bem como o autor (a história) falam da distância entre o mundo que fala a língua do dominador, o mundo de Lima e o do interior do país (contraste que é ainda mais central no Radio Cidade Perdida).

Em conversa entre o padre e o promotor distrital adjunto Félix Chacaltana, o padre pergunta
... Já viu alguma vez as igrejas de Juni, em Puno?
Chacaltana responde que não.
A resposta do padre
- São igrejas ao ar livre, como currais. Os jesuítas construíram no período da colônia para converter aos índios, para que eles assistissem à missa, porque só adoravam o sol, o rio, as montanhas. Compreende? Não entendiam porque o culto se realizava em lugar fechado.
-E adiantou?
Oh, sim, para manter as aparências. Os índios assistiam à missa encantados e em massa... Rezavam e aprendiam cânticos, até comungavam. Mas nunca deixaram de adorar o sol o rios , as montanhas. Suas rezas em latim eram só repetições decoradas. Por dentro, continuavam adorando seus deuses e seus jazigos, as guacas. Enganaram os jesuítas.


outro trecho
Não, as festividades se superpõem. O carnaval é originalmente uma celebração pagã, a festa da colheita. E na Semana Santa também há ecos da cultura andina anterior aos espanhóis. (...) Como lhe disse outra vez, os índios são insondáveis. Por fora, cumprem os ritos que a religião lhes exige. Por dentro, só Deus sabe o que pensam.

Mais no final do livro, ele vai além e traz Tupac Amaru enterrado em pontos diferentes do império “para que seu corpo nunca voltasse a se unir. Mas, segundo eles, essas partes estão crescendo até se juntar. E, quando encontrarem a cabeça, o inca se levantará de novo e o ciclo se fechará”.

Puno, Juni, Tupac Amaru, a imagem dos camponeses andinos e até mesmo de Cuzco quase não existem na minha cabeça. A comparação pode ser rasa, mas em um outro livro, europeu, quando aparecem coisas sobre Praga, Varsóvia, Rússia, Nietzsche – pra não falar nas cidades mais óbvias e pra ser fiel ao outro livro – a impressão que eu tenho é que trago mais referencias sobre elas do que as histórias daqui de perto. È um comentário comum, mas é muito forte perceber como vão se tornando familiares lugares que são parte dos filmes que vemos, dos livros que lemos. E, ao contrário, como a ausência deles nos impede de construir imagens, expectativas, de ter vontade de visitar, de saber como vivem as pessoas por lá.

4 comentários:

Suspenso disse...

Ai Caramba, sou muito fã dessa Priscélia Desvairada!!!
vou colar o link do seu blog lá no emplastroporoso, que agora é super secreto...
Logo te mando a senha.
Saudades

lidianeves disse...

:-)
Adorei seu blog! Só vi agora.
Ainda não li tudo, não, mas li um pouco.
E o fotolog invisiblecities, também é seu?
Beijos!

Mari disse...

nunca mais?

Unknown disse...

Priiiiiiiiiii....
também descobri seu blog agora. Estou encantada.
Eu tenho um outro livro desse mesmo autor, uma reportagem que ele fez sobre o líder do Sendero Luminoso, Abimael Guzmán. Vamos trocar? Achei sensacional, tem passagens autobriográficas e conta como ele, crianca exilada, recebia as imagens dos cachorros pendurados nos postes que vc citou.
beijo!